Cemitério de flores artificiais

Herácliton Caleb
2 min readOct 16, 2019

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Subo à rua do morro e chego no cemitério. Encosto a minha bicicleta e peço licença para entrar. Licença para quem?, não termino o pensamento. Passo entre as lápides — muitas delas sem nomes, o que me deixa triste — e vejo flores artificias. Imagino o raciocínio de quem comprou: Resistente contra sol e chuva. Faz sentido, mas é triste.

Na minha frente há uma cruz alta que muitas vezes olhei — com receio — lá embaixo quando era uma criança. Há um urubu em cima da cruz que me pergunta: Como é voltar para cá depois de tanto tempo? Digo que eu não sei, mas reclamo de um certo vazio em encontrar o mesmo lugar, mas não do mesmo jeito. O urubu retruca: O que falta? As pessoas, digo. As pessoas que me visitam em minha memória não estão aqui como prometeram.

O urubu me olha como se me perguntasse: E você queria o quê? Eu só queria retornar uma última vez à minha infância, penso em meu íntimo. Enquanto olho todo aquele resto — pois isso que são, que seremos — penso que revisitei tanto esse lugar em meus sonhos que é frustrante encontrar todas as memórias solidificadas nos lugares, mas sem vida humana, sem rostos, sem ânima.

Já disse que encontrei meu nome escrito na parede do lado da escola? Encontrei, mas esse nome para as pessoas de hoje não significa nada. É apenas um nome para os novos alunos da escola. O urubu me diz: É o ciclo. Sim, eu sei, esse maldito ciclo. É um maldito ciclo, não é? Talvez o problema é que eu tenha sido imensamente feliz na minha infância. E tudo o que faço hoje é perseguir essa sensação.

Penso numa lista de coisas que faço perseguindo isso, mas o urubu volta a se mexer como se pensasse: retornar é impossível na existência. Se ao menos os sonhos me deixassem em paz… Volto ao urubu, penso na piada que é uma conversa com um urubu, eu digo: Eu sinto falta dessas pessoas, ele diz: “Eu as comi”. Há algo mais triste que um urubu irônico em cima de uma cruz em um cemitério com flores artificiais?, penso nisso e sento em uma lápide. Não tem nome, o que me deixa mais triste. Uma lápide sem nome, anoto no meu caderninho.

Já estou cabisbaixo quando percebo a árvore que insiste em crescer exatamente em cima de onde havia um corpo, no cercado. Um corpo que virou árvore. Talvez no paletó do morto havia sementes, eu penso e dou um sorriso.

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